FORMAS DE SOLUÇÃO DOS CONFLITOS DEMANDAS JUDICIAIS X PROCEDIMENTOS ARBITRAIS
FORMAS DE SOLUÇÃO DOS CONFLITOS
DEMANDAS JUDICIAIS X PROCEDIMENTOS ARBITRAIS
CRISE DA MODERNIDADE
Vivemos na era fast. Via de regra, pouco importa a qualidade do que se consome, desde que se sorva o mais rápido e economicamente possível.
Desde os alimentos, dotados de sabores artificiais e padronizados, ingeridos em balcões em meio ao atendimento de ligações telefônicas quase sempre consideradas urgentes, passando pelos cuidados com a saúde, tratada de forma impessoal por profissionais cada vez mais especializados e menos conhecedores do funcionamento do conjunto do organismo humano, até a arquitetura, a arte, o entretenimento etc., vivemos na era dos resultados rápidos e econômicos, ainda que em sacrifício da qualidade.
Tudo feito, por mais paradoxal que possa parecer, em nome do progresso que, segundo Gilberto de Mello Kujawski “resume em si todo o sentido dos tempos modernos…é o fiat da modernidade, sua causa eficiente, digerindo minuto a minuto o presente, em nome de um futuro melhor”.
Não há, por exemplo, termo de comparação entre a realidade de um trabalhador urbano de hoje com aquele que porventura exercia atividade similar antes da profunda transformação social cuja origem remonta à revolução industrial, mas que vem sendo acelerada nas últimas décadas em ritmo nunca imaginado.
Nesse exato sentido, acentua o Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, João-Francisco Duarte Jr. que: “Desde sempre, o artesão se mostrara senhor de seu trabalho, levando, ao longo dos dias, uma vida regida organicamente pelo próprio corpo e em concordância com as alterações sazonais do mundo. Quer dizer: concorde com a estação do ano, trabalhava segundo a sua necessidade, comia ao ser solicitado pelo estômago, dormia sob o imperativo do sono etc. Seus horários e seu regime de atividades se davam em conseqüência de um ritmo vital, orgânico, corporal. Entretanto, ao se empregar numa daquelas nascentes indústrias, ao se tornar funcionário de uma organização, sua atividade diária passou a ser regida por uma lógica que lhe era exterior, qual seja, a da nova produção industrial. Ocorrência que o obrigou a dormir, a acordar, a comer e a trabalhar em conformidade com os horários estabelecidos por uma racionalidade produtiva a ele externa e totalmente alheia às suas demandas…”
A crescente imposição dessa racionalidade produtiva dissocia os trabalhadores de condições naturais de produção, submetendo-os a uma lógica exógena, pouco ou nada compreendida.
A CRISE DA MODERNIDADE E O PODER JUDICIÁRIO
A administração da justiça não ficou alheia a esse fenômeno. Abarrotados de processos que se desenrolam teoricamente sob sua presidência, os magistrados transformam-se, cada vez mais, no modelo de funcionário tão bem descrito por Duarte Jr., cumpridores de metas e horários jamais suficientes para atender adequadamente a demanda que se lhes é apresentada.
O volume de demandas que chegam ao Poder Judiciário é cada vez maior. O homem médio tem hoje não só uma gama muito maior de direitos assegurados, como a consciência de sua existência em proporções jamais vista na história de nosso país.
Como conseqüência desse fenômeno, no entanto, aquilo que no passado era tratado como acontecimento natural no âmbito das relações sociais, hoje toma ares de infração e, com enorme freqüência, torna-se litígio, desaguando no sistema judiciário.
E como está o preparo do Poder Judiciário frente a essa nova realidade social?
Excepcionada a implementação da informática, os Juízes contam hoje com uma estrutura muito similar, quando não idêntica, àquela de que dispunham seus pares nos primórdios do século passado. O Juiz de hoje promove o desenvolvimento dos processos exatamente como faziam seus antecessores, analisando pilhas e pilhas de papel, realizando audiências, inspeções, coordenando o desenvolvimento de perícias etc.
Esse fenômeno nos coloca ante um importantíssimo e complexo desafio que é o da identificação do ponto de equilíbrio entre Justiça e celeridade.
Nesse contexto, há aqueles que – não sem razão – vociferam contra os plurais mecanismos inerentes ao exercício do direito de defesa, dentre os quais, em especial, os recursos que, aos milhões, invadem os tribunais estaduais e até mesmo os mais que solicitados tribunais superiores.
No Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, cada Ministro recebe, em média, 1.000 novos recursos por mês.
Esse cenário, como é natural, tem gerado a necessidade do desenvolvimento de mecanismos de contenção do exercício recursal, alguns dotados de certa legitimidade, outros absolutamente arbitrários, todavia, todos festejados pelos exaustos membros do Poder Judiciário.
Em matéria jornalística publicada no caderno Direito & Justiça do periódico carioca Diário do Commercio, tratando do funcionamento do Superior Tribunal de Justiça intitulada “Mais de 15 mil Agravos Rejeitados”, é informado, com constrangedor entusiasmo, que “Em sete meses de atividade… cerca de 15.500 agravos de instrumento foram reprovados no exame prévio de admissibilidade e deixaram de ser distribuídos aos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Estatisticamente, isso significa que cada gabinete deixou de receber mais de 500 agravos no período”. Mais à frente, conclui a matéria, no mesmo tom festivo, acentuando que: “A iniciativa é mais um passo na direção de um Judiciário mais ágil e efetivo na prestação jurisdicional.”
Essa afirmação, na realidade, apenas permite constatar a falência do sistema que, ao invés de efetivamente buscar seu aprimoramento, opta por restringir indiscriminadamente acesso dos cidadãos à tutela estatal.
O fato é que o Poder Judiciário não suporta mais as demandas que lhe chegam diariamente para apreciação. O valor “justiça” deixou de ser um fator primordial de preocupação nas decisões judiciais, dando lugar à busca, em alguns casos inconseqüente, por uma celeridade que não só tarda a chegar como representa, por vezes, o atropelo de direitos elementares das partes.
Há aqueles, então, que se posicionam contrariamente à imposição de limites ao exercício do direito de ação ou à interposição de recursos, clamando pela observância dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito. Esquecem-se, todavia, que a tutela tardia muitas vezes equivale à não-tutela. Com efeito, o reconhecimento da existência de um direito uma ou duas décadas após o ajuizamento da ação pode importar em prejuízos tão significativos às partes (tanto a vencida, quanto a vencedora) que equivalha, na prática, à não solução do litígio. Nesse período economias podem ter sido aniquiladas, um número incontável de trabalhadores pode ter sido levado a engrossar a gigantesca fila dos desempregados, famílias podem ter-se dissolvido, enfim, difícil seria a tarefa de eleger, entre a tutela tardia e aquela conferida com a supressão de direitos, qual a mais danosa.
As denominadas formas alternativas de solução de conflitos se apresentam, portanto, como uma necessidade inquestionável e emergencial.
Há, todavia, que se tomar alguns importantes cuidados, pena de transferir para o âmbito desses novos mecanismos os intoleráveis vícios de que se encontra contaminada a velha máquina judiciária.
Paralelamente, devemos estar atentos para que a privatização dos mecanismos de solução de conflitos não contribua para agravar ainda mais os já agigantados problemas pelos quais atravessa o Poder Judiciário, transformando-o, num paralelo com o sistema de saúde, no SUS Jurisdicional, destinado àqueles que, por falta de recursos, sejam constrangidos a suportar – agora de forma concentrada e agravada pela redução crescente de verbas – as mazelas de um sistema inoperante e ineficaz.
Observe-se, nesse sentido, o quanto acentua o magistrado catarinense Joel Dias Figueira Júnior em seu Arbitragem, Jurisdição e Execução: “enquanto a denominada litigiosidade contida, de menor expressão econômica, menos complexa e de reduzido potencial ofensivo, está sendo gradativamente liberada e satisfeita de forma mais ou menos adequada por intermédio da ampliação do acesso à justiça especializada, na procura cada vez maior pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, aquelas questões conflituosas envolvendo valores econômicos de maior expressão, exigindo intrincada prova pericial e, não raras vezes, de caráter internacional, poderão, a critério das partes (facultatividade), quando o litígio versar sobre direitos patrimoniais disponíveis, utilizar-se da justiça privada, por intermédio da instituição do juízo arbitral previsto na Lei 9.307/96”.
CRISE DE CONFIABILIDADE
Não temos qualquer receio de afirmar que o Poder Judiciário vive hoje, acima e além do quanto até aqui expostos, uma importante crise de confiabilidade.
Ao assim afirmarmos não estamos nos referindo unicamente às graves denúncias havidas, cada vez em maior número, acerca da prática de atos de improbidade (muitas vezes previstos em tipos penais), por parte de magistrados, alguns integrantes das mais altas cortes do país.
Referimo-nos ao fato de que a função jurisdicional em si vem, paulatinamente, perdendo um de seus principais atributos que é o da pacificação dos conflitos sociais.
Para que isso ocorra é necessário que aquele a quem é dado solucionar os litígios detenha efetiva legitimidade perante as partes, de sorte que sua decisão seja por elas recepcionada com a serenidade oriunda de sua autoridade natural.
Do contrário, aquele que termina vencido, ao invés de ver pacificado o conflito no qual se encontrava envolvido, agrega à insatisfação inaugural, outra proveniente de uma decisão à qual em absoluto confere legitimidade.
É, portanto, absolutamente natural que nesse cenário as partes busquem o esgotamento de todos os meios que estiverem ao seu alcance, no afã de fazer prevalecer o que reputam ser seu direito.
Em nossa atividade profissional, na lida há mais de década e meia no contencioso judicial, temos observado que, infelizmente, tende a ser cada vez menor a preocupação dos magistrados em pacificar conflitos. Antes, é absolutamente comum o intuito de silenciar as insatisfações por meio de posicionamentos totalitários muitas vezes imbuídos de pré-concepções que, por certo, somente contribuem para o acirramento dos ânimos e a formação de um insustentável cenário de não confiabilidade no órgão julgador.
Essa observação não é recente, sendo há mais de vinte anos destacado por CÂNDIDO DINAMARCO: “A eliminação de litígios sem o critério de justiça equivaleria a uma sucessão de brutalidades arbitrárias que, em vez de apagar os estados anímicos de insatisfação, acabaria por acumular decepções definitivas no seio da sociedade. (…) Como a todo intérprete, incumbe ao juiz postar-se como canal de comunicação entre a carga axiológica atual da sociedade em que vive e os textos, de modo que estes fiquem iluminados pelos valores reconhecidos e assim possa transparecer a realidade da norma que contêm no momento presente. O juiz que não assuma essa postura perde a noção dos fins de sua própria atividade, a qual poderá ser exercida até de modo bem mais cômodo, mas não corresponderá às exigências de justiça.”
Não ignoramos o fato de que as partes, muitas vezes, buscam o Poder Judiciário não para solucionar conflitos através da aplicação do Direito ou da Justiça, mas para fazer prevalecer seus próprios interesses em detrimento de demais valores. Tal questão, no entanto, dada sua relevância, será tratada em tópico específico.
Referimo-nos ao fato de se ter abandonado, no curso do tempo, as razões que conduziram à idealização de um sistema voltado à prestação jurisdicional, qual seja, a harmonização das relações sociais pela autoridade estatal.
Em verdade, o que se observa em uma parcela significativa dos julgamentos, especialmente aqueles realizados por órgãos colegiados, é a total abstração acerca da existência de vidas, histórias pessoais, economias de uma existência inteira, em jogo naquele momento. Julgam-se números, extensos aliás. Julga-se em massa, em bloco, no atacado e, por conseguinte, salvo raríssimas exceções, com fundamento em precedentes de questionável aplicabilidade dadas as particularidades da causa em julgamento. Numa única sessão de julgamento do Tribunal de nosso Estado chega-se a julgar mais de duas centenas de recursos, a maioria por unanimidade já que raramente a opinião manifestada pelo relator é objeto de qualquer questionamento.
Repita-se: estamos, também no tocante aos mecanismos de distribuição da Justiça, na era fast. Compromete-se a qualidade das decisões em nome de uma celeridade que, ainda assim, não se realiza.
O resultado desse complexo cenário é a já referida perda da confiabilidade em relação às decisões judiciais, não sendo de se estranhar que a quase totalidade das partes termine por somente , mesmo assim de má vontade e invariavelmente sem concordar, a decisão proferida no último dos recursos ou medidas que a lei prevê. E isso pelo único e exclusivo fato de inexistir qualquer outro recurso que, houvesse, seria certamente utilizado.
E que não se creia ser a supressão dos recursos a solução desse gravíssimo problema, pena de se adotar o comportamento do avestruz que, ante determinado cenário desafiador, afunda a cabeça no solo deixando seu corpanzil à mostra.
Finalmente, cumpre analisar com destacada atenção o problema atinente aos procedimentos de instrução probatória nos processos judiciais, em especial no que toca à realização de prova pericial.
No mesmo sentido do que até aqui se expôs, a nomeação de técnicos, via de regra, objetiva tanto mais a desoneração de uma obrigação do magistrado, que a busca de um resultado que inspire efetiva confiança nas partes por força da qualificação, probidade e imparcialidade do técnico nomeado.
Os peritos que servem ao Poder Judiciário raramente são especialistas nas matérias versadas nas provas técnicas que realizam. Tratam-se, em regra, de generalistas que servem ao magistrado em toda sorte de demandas, circunstância que muitas vezes se torna evidente por força da superficialidade de seus laudos e do não enfrentamento das questões de maior complexidade que lhes são submetidas.
Por óbvio, tal cenário em nada contribui para a formação de uma imagem confiável do Poder Judiciário perante os jurisdicionados, o que, como vimos, seria indispensável à consecução de seu objetivo primordial de pacificação de conflitos.
Apenas para propiciar maior reflexão a respeito do quanto aqui tratado, cumpre destacar que ainda hoje existe, no âmbito das relações estabelecidas pelos seguidores da doutrina judaica, o hábito de se submeter determinadas controvérsias à análise do denominado Beit Din que, em síntese, consiste em um grupo de três juízes leigos, todos rabinos, que recebe reclamações da mais variada ordem, toma depoimentos, analisa os argumentos apresentados por uma e outra parte e profere sentença, normalmente de conteúdo o mais possível conciliatório. Quando há desacordo entre os juízes, prevalece a decisão da maioria.
Referidas decisões não estão sujeitas a embargos, agravos, apelações, recursos especiais, extraordinários ou qualquer outro meio de questionamento. Todavia, são admitidas como a expressão do direito aplicável à espécie e apaziguam os demandantes pelo fato de ser conferida ao órgão julgador, por ambas as partes, a necessária legitimidade.
Assim, é fundamental que se enfrente, com a necessária atenção, o problema da crise de confiabilidade a que está submetido há muito tempo o Poder Judiciário.
Isso não significa, no entanto, que tenhamos a ingenuidade de acreditar que todo o problema da distribuição de justiça possa ser creditado às deficiências do órgão julgador.
Um fator que, associado ao referido descompasso entre as prioridades dos Julgadores e as efetivas necessidades dos jurisdicionados, se destaca como dificultador da adequada prestação jurisdicional é a precariedade das estruturas de apoio dos juízes e tribunais. Muitas vezes a morosidade nos andamentos dos processos decorre do total desaparelhamento de tais estruturas. Essa realidade é há muito destacada por E. D. MONIZ ARAGÃO: “Urge preparar adequadamente a infra-estrutura dos juízos e tribunais, pois sem isso a maquina judiciária continuará a funcionar precariamente. A lamentável, mas arraigada tradição brasileira de fazer das serventias dos foros judicial e extrajudicial moeda política e de os beneficiários fazerem do cargo moeda propriamente dita é mais forte que a noção de responsabilidade dos detentores do poder de nomear. (…) Aplicadas estas idéias à situação existente no País, a grande tese a defender no momento é menos a da reforma da lei, que está sempre na cogitação de quantos se pronunciam a respeito, e mais a do aprimoramento em todos os níveis dos que a interpretam e atuam.”
Há uma série de outros fatores que influenciam na conformação desse complexo cenário e talvez a principal delas resida no espírito com o qual as partes se apresentam em juízo. É o que trataremos a seguir.
CRISE DE MORALIDADE
Como anteriormente destacado, ao aforar determinada demanda, as partes muitas vezes buscam menos a identificação da solução que melhor atenda ao Direito, que a manipulação dos meios necessários à obtenção de um veredicto que atenda aos seus interesses imediatos, ainda que contrários à lei ou até mesmo à moral.
Curioso observar, no entanto, que ao assim agir o indivíduo não crê estar contribuindo para o desvirtuamento do sistema jurisdicional. Trata-se, na sua nublada visão, de um fato isolado e inofensivo sob o ponto de vista das relações sociais.
Aliás, não é incomum que deixemos de identificar nas mazelas da sociedade o reflexo de nossos próprios comportamentos.
O indivíduo se enfurece ao chegar em casa e ser comunicado pela esposa que seu espelho retrovisor foi danificado por um motoboy que corria de forma irresponsável por entre os carros. Não se dá conta, todavia, da quantidade de vezes que, no âmbito de sua atividade profissional, exigiu ou ofereceu vantagem a determinada empresa de entrega de documentos para que fizesse chegar seus papéis a um cliente do outro lado da cidade em tempo recorde.
Doam-se aos filhos objetos adquiridos de vendedores ambulantes, ingressos comprados de cambistas e não se entende por qual razão eles adotam, no futuro, comportamentos incivilizados.
Oferece-se ao policial de trânsito determinado valor para que deixe de lavrar uma multa e se critica, durante o jornal televisivo noturno, o crescimento da corrupção no serviço público.
Enfim, colaboramos diariamente para a criação de uma sociedade viciada na qual atuamos , concomitantemente, como vítimas e agressores.
A intolerância e o comportamento contrário à pacificação de conflitos adotados pelas partes nos processos judiciais torna mais complexo, caro e ineficaz o sistema jurisdicional e isso, em regra, sequer é objeto de reflexão por parte dos operadores do direito.
Necessitamos menos de novos meios de solução de litígios e mais de comportamento cidadão.
No dizer do inigualável J.J.Calmon de Passos: “a tutela excelente das liberdades, pelo grau ótimo de eficácia, é a resultante da auto-limitação que os indivíduos se impõem. Esta coerção está presente sempre e é sempre plenamente eficaz quando operacionalizada, dispensando qualquer agente inibidor externo. É o que poderíamos chamar de “institucionalização do dever”. Falhando, sua falta é suprida pela sanção difusa da heterolimitação social. Diante do fracasso desses meios, lança-se mão do recurso extremo e menos desejável da sanção política institucionalizada de que se ocupa o Direito. (…) Daí este mundo de conflituosidade progressiva que estamos institucionalizando. Enfatizando o direito, ressalto minha superioridade em detrimento do outro; acentuando o dever, conscientizo-me de minha responsabilidade em relação ao outro. Valorizo-o e enalteço-o. Pacifico.
(…)
É a impotência dos homens, mediante suas instituições não-estatais, para prevenir e solucionar os conflitos oriundos de sua convivência que impõe a utilização dos mecanismos jurídicos de que a tutela jurisdicional é a última e mais representativa expressão. A presença do jurista – doutrinador, postulador ou julgador – denuncia a vitória da doença no corpo social, como a do médico comunica a vitória da doença no corpo biológico. Feliz a sociedade que precisa pouco de médicos. Feliz a sociedade que precisa pouco de juristas. O que ocorreu em nossos dias, entretanto, foi o oposto. A nossa perda de perspectiva nos levou à apologia da doença e do doutor, ao invés de cuidarmos da sua profilaxia e prevenção” .
Não restam dúvidas de que no atual cenário, com o sistema jurisdicional evidenciando sua insuficiência para a solução dos litígios, é mais que bem vinda a elaboração de meios alternativos de pacificação de conflitos, como o é, por excelência, a arbitragem.
Todavia, se não refletirmos acerca dessas complexas questões atinentes, de um lado, ao despreparo daqueles a quem é conferido o poder de julgar (juiz de direito, árbitro, mediador etc.), e de outro, a ausência de interesse efetivo das partes litigantes na obtenção de uma solução justa e não que simplesmente lhe atenda os interesses mais imediatos, estaremos expostos ao seriíssimo risco de transferir para esses meios outros, os vícios que hoje atingem o sistema de distribuição jurisdicional.
HERANÇA PERNICIOSA
Ao prever tal contaminação não estamos realizando mero exercício amargo de futurologia. Pelo contrário. Essa herança já se faz presente em boa parte dos procedimentos arbitrais em curso em nosso país.
É notória, por exemplo, a dificuldade enfrentada pelas partes na escolha do(s) árbitro(s). Tal medida, não raras vezes consome mais tempo que o do seu próprio desenvolvimento.
Há, sem dúvida, diversas razões para isso. No entanto, a mais expressiva delas é que cada parte procura fazer prevalecer a escolha daqueles árbitros em relação aos quais tenham previa ciência, ou ao menos a forte crença, de que tenderão a beneficiá-la.
Raramente se busca um procedimento arbitral presidido por profissionais eqüidistantes dos interesses das partes, ou das teses por elas defendidas, num propósito efetivo de pacificação do conflito.
A função de árbitro, por sua vez, ao invés de ser desenvolvida por indivíduos efetivamente vocacionados ao exame de determinados assuntos e solução dos conflitos a ele atinentes, tornou-se, em muitos casos, uma simples alternativa de trabalho, sendo não raras vezes realizado por técnicos e operadores do direito sabidamente tendenciosos.
Assim, especialmente após uma ou mais experiências mal sucedidas, a parte “aprende” que, ao constituir um tribunal arbitral deve, de um lado, proteger-se contra as investidas da parte contrária no sentido da nomeação de técnico sabidamente favorável ao ponto de vista por ela defendido e, do outro, fazer gestões silenciosas para a identificação de árbitros que atendam aos seus interesses.
Acaba-se, deste modo, ao se desenvolverem novos mecanismos ou procedimentos para pacificação de conflitos, apenas por se estabelecer novos tabuleiros em que os peões repetirão, indefinida e eternamente, os mesmos vícios que acabam por tornar inúteis e obsoletas as novidadeiras estruturas, num primeiro momento festejada por aqueles mesmos que as desrespeitarão subseqüentemente.
Importante recorrer, para evitar a repetição de tais equívocos, a mais uma lição do saudoso J. J. CALMON DE PASSOS, mea culpa obrigatório atualmente: “Tudo é dito, pensado e escrito como se o direito não dependesse dos juizes, dos escrivães, e dos oficiais de justiça, da esperteza dos advogados e do senso moral de todas essas pessoas, como se ele não tivesse raízes no cotidiano social, econômico, político, como se dele não se pudesse esperar senão o que os valores socialmente correntes pudessem propiciar, sendo impossível colher-se justiça onde impera a opressão, retidão de julgamento, onde campeia a corrupção do bolso e do coração, senso de responsabilidade quando a coisa publica se torna cosa nostra.
Diz-se tudo como se o cotidiano do foro e da vida social inexistissem ou, existindo, fossem irrelevantes, para o direito, quando a verdade única é justamente inversa, ou seja, a de que enquanto permanecer gravemente enferma a nossa sociedade brasileira nenhuma ordem jurídica formal será salutar. Abstrair o social, o econômico, o político para parolar sobre o direito é incidir, em última, na falta de senso, para não dizer cinismo, daquele bêbado, que depois de haver, na véspera, ingerido garrafas e garrafas de vodka, intervalando muitas doses com o mastigar de algumas azeitonas solitárias, maldizia-se, diante da ressaca braba, que ameaçava vitimá-lo: Malditas azeitonas, malditas azeitonas!
Nós, que temos perfeita ciência dos problemas graves que emperram a efetivação do direito entre nós, todos eles de origem estranha à dogmática jurídica, quando nos comprazemos em criticar os procedimentos e os processos, as normas e os conceitos, em verdade nada mais estamos fazendo que camuflar o porre que tomamos, impotentes ou indiferentes diante dos problemas que realmente são problemas, atribuindo toda a culpa às formas e aos procedimentos, isto é, às pobres e inocentes azeitonas referidas pelo bêbado, mentindo a ele próprio e aos outros, mas faltando à verdade sem proveito nenhum, porque porre é porre e não é maldizendo as azeitonas que escaparemos do risco de nos termos deixado embebedar sem medida e sem controle.”
Outro fenômeno que infelizmente tem maculado os procedimentos arbitrais é o distanciamento, por parte do árbitro, a exemplo do que ocorre com os juízes de direito, da atribuição de buscar, por todos os meios de que dispõe, o conhecimento da verdade possível, visando à prolação de decisão dotada da mais efetiva legitimidade.
Com efeito, não raras vezes nos deparamos com árbitros formalistas e até mesmo burocráticos os quais, à toda evidência, estão com suas preocupações voltadas ao desfrute da “privilegiada condição” de juiz por um dia.
Enfim, muitos são os exemplos que evidenciam uma tendência de contaminação dos meios alternativos de solução de conflito, com especial ênfase na arbitragem, circunstância que nos exige redobrada cautela.
UMA PROPOSTA
Entendemos que o enfrentamento das complexas questões até aqui referidas passa, necessariamente, pela constituição de organismos vocacionados (i) à constituição de câmaras de mediação e arbitragem dotadas de inquestionável excelência em áreas específicas do conhecimento, tendo em seus quadros, exclusivamente, árbitros com diferenciada formação e experiência, bem como consciência da importância da função que exercem, (ii) ao compromisso com o apuro técnico na realização de exames e perícias, valendo-se, para isso, de profissionais e centros técnicos de excelência, reconhecidamente capazes e idôneos para tal atividade e, finalmente (iii) à realização de cursos de formação e qualificação de árbitros e mediadores.
Considerando-se não somente as particularidades que singularizam o direito do seguro, mas principalmente o fato notório de que a maior parte dos operadores do direito não possui conhecimentos elementares acerca dos princípios básicos que o regem, bem como dos elementos de ordem técnica que estruturam a operação de seguro, difícil será identificar uma área do conhecimento na qual se fizesse mais urgente a constituição de entes como aqueles aqui analisados.
Essa relevantíssima área do direito não dispõe hoje de entes efetivamente capacitados ao enfrentamento das complexas questões técnico-jurídicas havidas no âmbito das relações entre segurados, seguradores, corretores, resseguradores e retrocessionários.
Além disso, é condição sine qua non para que as partes aceitem submeter suas disputas atinentes a questões securitárias, que possam identificar entes dotados de estrutura necessária a processar e solucionar as disputas em tempo e modo corretos, destacadamente com respeito a questões técnicas e éticas.
Possui o Instituto Brasileiro de Direito do Seguro como finalidade, prevista em seus estatutos (art. 2º), “o fomento ao estudo do direito do seguro, sua divulgação e aprimoramento”.
Visando à consecução de tal finalidade tem, desde sua constituição, realizado atos muitos no sentido do incentivo e patrocínio do estudo aprofundado dessa especialíssima área do direito, como sejam a promoção de cursos, seminários e palestras, a edição de livros e produção de filmes, dentre muitas outras iniciativas.
No exercício de tal atribuição, não somente se firmou o IBDS como uma referência ética e acadêmica no âmbito do direito do seguro, como estabeleceu relações profundas com entes nacionais e estrangeiros, como sejam o Instituto de Seguros de Lion – entidade vinculada à Universidade Lion III, a Fundação Científica Jean Bastin, a Fundação Getúlio Vargas etc., além de técnicos e juristas da mais destacada qualificação, como sejam, por mero exemplo, os Profs. Ruben Stiglitz, Antônio Carlos Marcato, José Maria e Maria Luiza Muñoz Paredes, Humberto Theorodo Júnior, Luc Mayaux, Ovídio Baptista da Silva, Hubert Groutel, Alberto Monti, Luigi Farenga, Judith Martins Costa, dentre tantos outros.
Paralelamente, sempre houve a preocupação daquele Instituto em lançar luzes no debate das mais intrincadas questões securitárias através do convite sistemático a juristas afeitos a outras áreas do direito, além de técnicos das mais diversas áreas do conhecimento.
Assim, é simples observar que se encontra o IBDS naturalmente vocacionado à adoção das providências aqui sugeridas.
Em seu instrumento de constituição, há expressa previsão (art. 4º, VII) de que para a obtenção de sua finalidade deverá “promover a arbitragem e outros meios especiais de jurisdição contenciosa e voluntária de qualquer modo concernentes a relações securitárias”, bem assim que um dos meios para o alcance de seus objetivos (art. 5º, IX) é a “instituição ou colaboração para a instituição de órgão, painel ou câmara de arbitragem ou mediação voltada à solução de controvérsias concernentes a relações securitárias.”
Parece-nos, pois, não somente oportuno como urgente que se adotem as providências necessárias à constituição de câmara de mediação e arbitragem no âmbito do IBDS, contando, para tanto, com o suporte dos diversos profissionais e entes técnicos de singular destaque, nacional e internacional, que desde a sua constituição vêm colaborando para o fomento do direito do seguro, possibilitando, com isso, que as múltiplas partes envolvidas nas relações securitárias possam ali encontrar um centro de excelência habilitado à solução de seus conflitos.
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KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Crise do Século XX. São Paulo: Ática, 1988.
DUARTE JR., João-Francisco, O Sentido dos Sentidos – A Educação do Sensível, 4ª ed.Curitiba. Criar. 2006
MELLO, Sonia Maria Vieira de, O direito do consumo na Era da Globalização: a Descoberta da Cidadania, Rio de Janeiro: Renovar, 1998: “Hoje, notamos uma nítida alteração nos hábitos dos consumidores brasileiros, cada vez mais conscientes, exigentes e informados, formando assim uma massa de forte poder político.”
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