Breves Considerações sobre a Causalidade no Contrato de Seguro

Breves Considerações sobre a Causalidade no Contrato de Seguro
Maurício Silveira
RESUMO

No presente texto realizamos um sobrevoo sobre as principais correntes que, no Brasil, se debruçam sobre o tema da causalidade, regulado no Código Civil no art. 403, traçando um paralelo com o contrato de seguro, à medida que um dos principais desafios encontrados no âmbito das regulações de sinistro é a identificação das causas do evento reclamado à seguradora e, a partir daí, a análise acerca do enquadramento do sinistro no âmbito das garantias contratadas.

Em seguida, fazemos uma análise a respeito do entendimento atual dos Tribunais Superiores a respeito do tema, concluindo com a manifestação do nosso entendimento a respeito e dos caminhos que avaliamos devam ser seguidos, no âmbito do Direito do Seguro, para o cumprimento adequado dos deveres das partes contratantes.

Palavras Chave: Causalidade, Seguro, Regulação de Sinistro, Jurisprudência dos Tribunais Superiores.

ABSTRACT

This piece brings an overview of the main Brazilian currents focusing the causation theme – regulated by the art 403, Brazilian Civil Code – and how it relates to insurance law, since one of the main challenges found in loss adjustments is identifying event causes of claims to insurer, followed by due analysis around whether identified event is covered by the policy.
The piece also offers an analysis on the current Superior Courts understandings of causation, whereas it is useful to provide further features, in light of insurance law, to our own evaluation of the paths that must be taken for an adequate fulfillment of duties by the parties in a contract.
Key words: Causality, Insurance, Loss Adjustment, Superior Courts Jurisprudence.
I – Introdução

O contrato de seguro encontra sua definição normativa no Código Civil de 2002, art. 757: “Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”

São elementos essenciais do contrato de seguro a garantia, o interesse, o risco, o prêmio e a empresarialidade.

Interessa-nos, para fins do presente estudo, lançar especial atenção sobre o conceito de risco que, conforme lembram TZIRULNIK, CAVALCANTI e PIMENTEL é “a possibilidade de ocorrência de um evento predeterminado capaz de lesar o interesse garantido”.

Esse “evento predeterminado capaz de lesar o interesse garantido” é, no âmbito do contrato de seguro, denominado sinistro. Sinistro é, em síntese, a realização do risco; é o evento danoso que, nos termos e nos limites do quanto pactuado entre segurado e seguradora, tem o potencial de ensejar o pagamento da indenização que se apure como devida.

Sabemos que a obrigação central da seguradora para com o segurado é a prestação de garantia, a qual tem início na contratação do seguro e se estende por todo o período em que vigorar o contrato. Essa obrigação se exaure mediante o pagamento da indenização, naqueles casos em que, ocorrido o sinistro, se identifique a existência de prejuízos indenizáveis.

Para que se possa definir, com a exatidão necessária, se o evento reclamado encontra-se garantido; se houve prejuízos indenizáveis; e, por fim, qual o montante devido ao segurado – após a aplicação de depreciação, rateio, franquia etc., deve a seguradora promover a regulação de sinistro.

Regulação de sinistro, como ensina TZIRULNIK, é a “prestação de serviço integrante da dívida do segurador perante o segurado, destinada à confirmação da existência e à precisão do conteúdo da dívida indenizatória”.

Essa atividade, geralmente, é desempenhada por empresas terceirizadas mediante contratação da seguradora, podendo, no entanto, ser executada por equipe interna, hipótese, todavia, cada vez mais rara.

Uma das primeiras e mais relevantes atividades realizadas pelos responsáveis pela regulação de um sinistro é a identificação das causas do evento reclamado à seguradora.

Isso porque, será através das conclusões que vierem a ser alcançadas no exame de causas que se tornará possível a realização do cotejo, pelos reguladores, entre o contrato de seguro e os fatos objeto da reclamação, sempre com foco na identificação da eventual existência e extensão da obrigação indenizatória.

Há que se registrar, desde logo, que no âmbito do contrato de seguro pende imensa polêmica a respeito de quem é o responsável pela identificação das causas do sinistro: se o segurado ou a seguradora. Na prática, especialmente nos seguros de grandes riscos, é regra o envio, já na primeira correspondência da seguradora ao segurado, de solicitação do fornecimento de relatório de causas para que a regulação tenha curso.

Não cabe aqui, dada a especificidade do tema objeto de nossa análise, fazer maiores digressões a respeito dessa questão. Vale, todavia, registrar nosso entendimento de que, nos seguros de riscos nomeados, compete ao segurado a identificação das causas do evento reclamado à seguradora, justamente por ser pressuposto da eventual obrigação indenizatória a comprovação da realização de um dos riscos identificados no contrato como garantidos.

Pela mesma razão, nos seguros contratados sob a modalidade all risks, uma vez que, caso não evidenciado pela seguradora a ocorrência de umas das causas excluídas de cobertura, o sinistro estará garantido pelo seguro, é dela, seguradora, a obrigação de promover o exame de causalidade e, se o caso, apontar precisamente as razões que fundamentem eventual negativa ao pleito indenizatório que lhe foi formulado.

E certo é que, se não se conseguiu, até hoje, chegar-se a um consenso nem mesmo a respeito do responsável pela identificação das causas de um sinistro, tanto menos se tem clareza a respeito dos critérios que devem ser utilizados para a identificação do evento a ser considerado como causa dos danos reclamados à seguradora.

Mais que isso. Pese a relevância da investigação de causas para o cumprimento adequado das obrigações provenientes do contrato de seguro, especialmente no Brasil, pouco ou nenhum estudo se fez a respeito do tema.

Muito do que se observa na prática do mercado segurador é a improvisação de conceitos, ou mesmo a sua manipulação, a depender das conclusões que melhor atendam a critérios de conveniência econômica.

Essa realidade, por certo, não é desejada em um sistema que se pretenda minimamente confiável, previsível.

A questão é saber se existe, concretamente, a possibilidade do estabelecimento de um critério universal para a solução da questão da causalidade, especialmente, como veremos, quando se está diante da existência de múltiplas concausas, as quais, a depender do entendimento que se adote, possibilitarão a fundamentação de decisões em sentidos diametralmente opostos.

E certo é que, infelizmente, esse não é um fenômeno restrito ao direito do seguro ou às regulações de sinistro. Como lembra JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, nas disputas judiciais há pouquíssima precisão e consistência na identificação dos critérios utilizados na definição das causas.

Afirma o civilista que “não é incomum que os tribunais acabem decidindo muito mais baseados no sentimento de justiça dos julgadores do que em uma doutrina sólida, o que faz com que afirmem, quando entendem que o dano merece ser reparado, que a teoria “x” se aplica e, caso contrário, que os pressupostos dessa mesma teoria não se encontram demonstrados”.

Corroborando esse entendimento, FERNANDO NORONHA lembra que:

“Um dos pontos mais difíceis da responsabilidade civil é este de saber que danos acontecidos podem ser considerados causados por um determinado fato. Nem sempre é fácil saber se a contribuição de um fato para um dano é suficiente para que se deva considerá-lo gerador deste. Por outro lado, pode também acontecer que um só dano deva ser atribuído a diversas causas. Pode ainda haver vários danos, e de diversa natureza (patrimoniais, extrapatrimoniais, presentes e futuros, etc.), todos ligados a um só fato, ou a diversos, sem se saber quais são os danos que foram determinados por cada fato. Às vezes, além do dano imediatamente causado por um certo fato, tido como gerador da responsabilidade, surgem outros danos (danos indiretos), que possivelmente não teriam acontecido se não fosse aquele fato, mas não se sabe se devem ser considerados”.

E conclui:

“[N]inguém até hoje, nem entre nós, nem nos sistemas jurídicos com idêntico preceito, conseguiu explicar em termos satisfatórios, juridicamente razoáveis, quais serão esses danos que devem ser considerados ‘efeito direto e imediato’”.

A demonstrar com precisão e clareza o cerne das dificuldades existentes na identificação da circunstância que, legitimamente, poderá ser considerada como causa de um determinado dano, está a lição de AGOSTINHO ALVIM:

“Toda a causa é causa em relação ao efeito que produz, mas é efeito, em relação à causa que a produziu, estabelecendo-se, deste modo, uma cadeia indefinida de causas e efeitos.
(…)
Observa SAVATIER, com referência às causas regressivas, que a causa de todo dano é infinitamente complicada, uma vez que número delas, à medida que olhamos para trás, cresce em progressão geométrica; e sendo certo que cada uma merece o nome de causa, uma vez que sem ela o dano não se teria verificado, surge a dificuldade de se saber qual delas escolheremos como sendo a responsável por ele (cf. SAVATIER, ob. Cit., vol III, nº 457)”.

Esse estudo, portanto, pese a sua singeleza, visa a expor, ainda que de forma muito resumida, as principais correntes do pensamento jurídico a respeito da questão da causalidade, buscando, ao final, concluir sobre a possibilidade, ou não, da adoção de um critério universal que permita uma maior pacificação, ao menos nesse específico aspecto, na relação entre segurados e seguradoras.

II – As principais teorias acerca da causalidade

Há, fundamentalmente, três principais teorias que tratam da questão da causalidade no Direito Civil brasileiro.

Analisaremos brevemente os elementos essenciais distintivos de cada uma delas para, em seguida, identificarmos se há algum entendimento dominante na jurisprudência atual e, por fim, manifestarmos nosso convencimento a respeito do tema.

II.1 – Teoria da Equivalência das Condições ou Condições sine qua non

A primeira e atualmente mais criticada corrente que analisa as questões atinentes à investigação de causas é a Teoria da Equivalência das Condições.

Surgida na Alemanha, entre 1860 e 1885, inicialmente para aplicação no direito penal, essa teoria, como lembra ORLANDO GOMES, se estrutura no entendimento de que “qualquer dos fatos condicionantes pode ser tomado como causa eficiente do dano, dado que não se produziria sem a concatenação dos fatos de que afinal veio a resultar prejuízo. Não é preciso, por conseguinte, que o dano seja consequência necessária e imediata do fato que concorreu para a sua produção. Basta verificar que não ocorreria se porventura o fato não tivesse acontecido. Pode não ser a causa imediata, mas se for condição sine qua non para a produção do dano, equivale a qualquer outra, mesmo mais próxima, para o efeito de ser considerada causa do dano”.

A expressão “equivalência das condições” decorre do conceito segundo o qual, quando se tem um conjunto de causas complementares, ou concausas, a supressão de uma deverá importar na conclusão de que o dano não ocorreria, ao menos do modo como se deu.

FERREIRA DA SILVA ressalta que, para aqueles que seguem a Teoria da Equivalência das Condições, “um efeito é, sempre, fruto de vários fatores e que estes, entre si, são de distinção quase impossível. Por isso, basta que o fato ou o ato seja uma conditio sine qua non do efeito para que venha a ser tido por causa”.

Lembra o autor, ainda, que referida teoria teria inspirado o legislador brasileiro ao estabelecer, no art. 13 do Código Penal, que “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.

Essa teoria teve prevalência, especialmente no continente europeu, durante longo período. Não demorou, no entanto, para que começassem a surgir críticas as mais severas, especialmente relacionadas à sua excessiva abrangência e generalidade.

Como acentua ÁLVARO VILLAÇA, “Essa teoria é por demais abrangente levando a uma cadeia infindável de causas, sem qualquer lógica de entendimento razoável”.

Prossegue o ilustre civilista para, com suporte em Gustavo Tepedino, destacar sua “desmesurada ampliação, em infinita espiral de concausas, do dever de reparar, imputado a um sem número de agentes. Afirmou-se, com fina ironia, que a fórmula tenderia a tornar cada homem responsável por todos os males que atingissem a humanidade”.

Sintetizando de modo bastante bem humorado as críticas que jorram sobre a teoria da equivalência das condições, lembra ÁLVARO VILAÇA o comentário de Binding, reproduzido por Wilson de Melo Silva, de que, a se considerar essa tese, dever-se-ia reconhecer a “cumplicidade, no adultério, do marceneiro que fabricou o leito em que se deitou o casal de amantes”.

A segunda corrente existente no campo do estudo das causalidades é denominada “Teoria da Causalidade Direta e Imediata”.

II.2 – Teoria da Causalidade Direta e Imediata

Historicamente, constitui, no Brasil, uma das mais prestigiadas teorias sobre a causalidade, tanto em doutrina quanto na jurisprudência, e isso não só por ser considerada por muitos a mais adequada para a identificação das causas, mas por ser também considerada como aquela que teria sido a eleita pelo legislador de 2002 quando, ao regular o tema das “Perdas e Danos”, estabeleceu, no art. 403 do Código Civil, que “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”.

JUDITH MARTINS-COSTA afirma que, através do referido dispositivo normativo, o legislador realizou a “fixação dos limites do dano ressarcível, estabelecendo a regra geral de quantificação das perdas e danos, com isso indicando “quem” deve indenizar, “o que” se indeniza; “como” se indeniza; e “até que ponto” se indeniza”. E prossegue afirmando que “diante do texto do art. 403 a indenização não vai a ponto de alcançar o damnum remotum que não guarde relação causal direta e imediata com a inexecução bem como o dano meramente hipotético ou incerto”.

FERNANDO NORONHA, por sua vez, acrescenta que “remoto seria o dano que, embora ainda ligado ao fato acontecido, tem efetivamente por causa outros fatores, ou “concausas”; próximo seria aquele para cuja verificação não interveio nenhuma outra causa. O interesse da distinção estaria em que só o dano próximo seria reparável, o remoto não, devido à existência dessas concausas”.

A Teoria da Causalidade Direta e Imediata, no Brasil, teve o eminente ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal AGOSTINHO ALVIM como um de seus mais destacados e fervorosos defensores, justamente sob o fundamento de “ser a adotada pelo Código”.

Esse entendimento, aliás, é comungado por ÁLVARO VILLAÇA para quem referida teoria “embora congregue as duas teorias antes analisadas, é mais razoável e decorre da posição adotada pelo legislador brasileiro, no art. 403 do CC atual (art. 1060 do CC de 1916).

FERREIRA DA SILVA recorda que AGOSTINHO ALVIM, após concluir pela sinonímia entre as expressões “direto” e “imediato”, sendo uma, no seu dizer, reforço da outra, ensina que ambas denotam a exigência da “necessariedade” da causa. Para o autor, um fato é causa “necessária” de um dano à medida que “é causa exclusiva, porque opera por si, dispensadas outras causas”. E prossegue afirmando ser “indenizável todo dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária, por não existir outra que explique o mesmo dano”.

De acordo com a Teoria da Causalidade Direta e Imediata, para que se fale no dever de indenizar há que existir um nexo entre a causa que se investiga (que no âmbito do direito do seguro deve ser uma causa garantida pela seguradora) e o dano, vinculando-os diretamente, sem que haja, entre aquela e esse, concausas capazes de ensejar um rompimento desse vínculo direto. Na hipótese de haver um acontecimento capaz de romper esse nexo, deverá ser ele – e não mais o evento que antes se analisava – considerado como causa direta e imediata do dano.

Nas palavras de AGOSTINHO ALVIM:

“Quer a lei que o dano seja o efeito direto e imediato da inexecução. (…) A lei impõe a existência de um liame entre o inadimplemento da obrigação e o dano, de modo que o inadimplemento se atribua, com exclusividade, à causa do dano. (…) A expressão direto e imediato significa o nexo causal necessário.

ALVARO VILLAÇA ressalta, ainda, com suporte na doutrina de Arnaldo Rizzardo, que “interessa, no caso, o dano que é efeito direto e imediato do fato causador, e não o remoto, ou o advindo de novas causas. Apenas aqueles danos que têm relação com o fato ocorrido, e não outros que aparecem”… “Se o ato desencadeou uma alteração anatômica do organismo humano, mas se uma segunda causa agrava esta alteração, a conclusão é que surge um fenômeno superveniente, o qual determina um segundo resultado, a que deve responder o provocador”.

Entusiasta também da Teoria da Causalidade Direta e Imediata, o ex-Desembargador paulista CARLOS ROBERTO GONÇALVES acentua que “Ao legislador, portanto, quando adotou a teoria do dano direto e imediato, repugnou-lhe sujeitar o autor do dano a todas as nefastas consequências do seu ato, quando já não ligadas a ele diretamente”.

E para sintetizar a referida teoria, sugere ÁLVARO VILLAÇA, a título de exemplo, a hipótese de “alguém que sofre um atropelamento (ato ilícito), sendo removido a um hospital com pequenas escoriações, pelos danos causados, diretamente ligados ao acidente. Aí, a causa direta pela qual deve responder o causador desse acidente. Se o atropelado vem, depois, a falecer nesse hospital, em razão de um erro médico, por uma injeção aplicada indevidamente, ou pela aquisição de uma doença, esse novo resultado deve ser suportado pelo seu causador. É o que se depreende do art. 403 do CC”.

A exemplo do que ocorreu com a Teoria da Equivalência das Condições, também a Teoria da Causalidade Direta e Imediata, que angariou por muito tempo a preferência de parte significativa da doutrina – e ainda conta com defensores tanto na doutrina, quanto nos Tribunais – recebe, de muitos, críticas severas.

FERNANDO NORONHA visando a evidenciar a fragilidade da Teoria da Causalidade Direta e Imediata, especialmente em dadas circunstâncias, afirma que:

“Quanto haja diversas causas do dano, próximas ou remotas, saber qual devemos considerar a necessária, ‘por não existir outra que explique o mesmo dano’ nas palavras de A. Alvim, não é tarefa fácil. Isso dependerá até do ponto de vista do observador, que tenderá a considerar como causa aquela condição do dano que por qualquer título repute mais importante.”.

Mais adiante, volta à tona afirmando que “mesmo que ficássemos apenas com a exigência da necessariedade, ou seja, se por necessário entendêssemos aquilo que é forçoso, inevitável, fatal, ainda assim teríamos de reconhecer a existência de danos não necessários e apenas possível, mas que devem ser ressarcidos”. E arremata: “Perante as dificuldades que suscitam formulações como as que aludem ao efeito direto e imediato (art. 403) ou à causa necessária, não admitira que a jurisprudência, quando procura encontrar nelas algum apoio, muitas vezes acabe decidindo simplesmente de acordo com o bom-senso e com a inovação apenas da expressão literal contida no art. 403: quando acha que um dano deve ser reparado dirá que ele é “dano direto e imediato”; quando entende que não é merecedor de reparação, considerá-lo-á “dano indireto”.

JUDITH MARTIS-COSTA, por sua vez, afirma que “Não há dúvida de que o Ordenamento impõe a necessariedade da causa. A questão está em saber – em vista do art. 403 – se a causa necessária do dano está naquela que é seu “efeito direto e imediato”, ou se pode abranger efeito indireto e, ainda, se o efeito imediato é aquele temporal ou cronologicamente imediato ou, ao revés, aquele logicamente imediato, adequando-se, como tal, à produção do dano. Esta questão é pertinente porque, mesmo entre os que defendem a existência e a aplicação de uma “Teoria do Dano Direto e Imediato” de forma autônoma relativamente à Teoria da Causalidade Adequada não parece haver dúvidas que a expressão “dano direto e imediato” do art. 403 deve ser interpretada, e não tomada em sua literalidade.

Para JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, “Descendo-se da análise abstrata para os casos concretos, vê-se que a ideia de “causa necessária” não se constitui em explicação operacionalmente precisa, pois permanece a dúvida sobre o que poderia ser entendido como “efeito necessário”. No mundo das relações físicas – ao qual as regras da responsabilidade civil se reportam – todo efeito é fruto de um conjunto infinito de causas. Com a ideia de “causa necessária”, pois, permanecem sem resposta perguntas como “qual das causas é necessária?” ou “qual delas é a mais relevante?”.

Portanto, diante desse cenário, no qual parte significativa das situações da vida que ensejam solução fundada em análises causais não encontra suporte na Teoria da Causalidade Direta e Imediata, se faz necessário nos aprofundarmos na terceira e última teoria de análise causal, que é a Teoria da Causalidade Adequada.

II.3 – Teoria da Causalidade Adequada

Aqui os valores que se prestigia são os da razoabilidade e da previsibilidade do dano. Essa teoria parte da análise daquilo que comumente acontece na vida. Assim, uma determinada circunstância deve ser considerada causa de um dano quando, segundo condições normais, poderia produzi-lo.

Para que se possa aplicar corretamente a Teoria da Causalidade Adequada, aquele que investiga as causas de um determinado evento deve se colocar no momento anterior ao dano e, dessa perspectiva, avaliar qual seria a consequência natural e esperada do fato, sendo certo que, por exemplo, por conta do desenvolvimento da ciência pode-se, em dado momento, se obter conclusões completamente distintas das que foram obtidas anteriormente. Mas o fato é que, se se concluir que o dano era imprevisível, a causalidade ficará excluída.

JORGE CESA FERREIRA DA SILVA afirma a respeito dessa teoria que “Após estabelecer quais as condições que dão ensejo ao evento, o intérprete deve, segundo ela, questionar-se sobre qual entre elas é capaz de gerar o resultado, tendo em conta a normalidade dos acontecimentos e a experiência comum”.

Esclarece, ainda, o civilista gaúcho, que “Também orientada inicialmente para o direito penal e igualmente formulada nas últimas décadas do século XIX, na Alemanha (1871, por Von Bar), a teoria é assim sintetizável: só podem ser tidos por efeitos de uma causa aqueles que, no normal andar dos acontecimentos, dela costumam decorrer…”. Lembra, igualmente, que essa teoria “acabou por se consolidar como a teoria mais aceita, seja no Brasil (cf. Paulo de Tarso Sanseverino, op. cit., p. 243), seja no estrangeiro (cf. Viney et Jourdain, op. cit., p. 161): a causalidade adequada”.

Outro autor que bem sintetiza a Teoria da Causalidade Adequada é o catedrático da Universidade de Coimbra ANTUNES VARELA. Em seu “Direito das Obrigações” se encontra o seguinte raciocínio, seguido de dois interessantes exemplos:

“[S]endo necessária a relação de condicionalidade real ou concreta não é ainda suficiente para legitimar a obrigação de indenizar. Para tal, torna-se mister que o fato seja ainda uma causa adequada do dano.
Não basta, por outras palavras, que o fato tenha sido, em concreto, uma condição sine qua non do prejuízo. É preciso ainda que o fato constitua, em abstrato, uma causa adequada do dano.
Suponhamos que a agressão física provocou a morte da pessoa ofendida, mas só porque algumas ocorrências anormais, de caráter excepcional, se meteram por permeio. O agredido teve de ser internado no hospital e contraiu aí, por contágio, a doença que o vitimou.
A agressão poderá ser considerada a causa da morte, segundo a doutrina da equivalência das condições, vez que, sem a ofensa corporal, a pessoa não teria sido internada e não teria contraído no estabelecimento hospitalar a doença a que sucumbiu. Mas não é a causa da morte, de acordo com a doutrina da causalidade adequada, desde que, em abstrato, a agressão praticada não tivesse como efeito normal a morte do agredido – a qual só se verificou, mercê de circunstâncias anômalas, que intervieram na ocorrência.
Da mesma sorte, se alguém retiver ilicitamente uma pessoa, que se apresentava para tomar certo avião, e teve afinal de pegar um outro, que caiu e provocou a morte de todos os passageiros, enquanto o primeiro chegou sem incidente ao aeroporto de destino, não se poderá considerar a retenção ilícita do indivíduo como a causa (jurídica) do dano ocorrido, embora possa asseverar que este (nas condições em que se verificou) não se teria dado, se não fora o fato ilícito”.

ANTUNES VARELA também ressalta que a teoria da causa adequada é a que melhor se coaduna com “o pensamento ético-jurídico” brasileiro. E arremata:

“Contra a doutrina da causalidade adequada não depõe, nem de perto nem de longe, o fato de o artigo 1.060 relativamente à responsabilidade contratual, ainda que proveniente de dolo do devedor, ter limitado os lucros (cessantes) indenizáveis àqueles que constituem um efeito direto e imediato da inexecução.
É bastante significativo, na revelação do pensamento legislativo, a circunstância de a lei brasileira se cingir ao nexo da imediação apenas no que concerne à delimitação dos lucros (cessantes) indenizáveis, ao invés do que sucede, com o Código francês (art. 1.151) e o Código italiano de 1865 (art. 1.229), que o mandam aplicar indistintamente na delimitação do dano emergente (l aperte éprouvée) e do lucro cessante (du gain dont il a été privé).

Finalmente, destaca JUDITH MARTINS-COSTA que “A possibilidade de a indenização estender-se para além dos danos temporalmente imediatos é viabilizada pela Teoria da Causalidade Adequada que, no nosso modo de ver, não apenas engloba a necessariedade da causa quanto oferece coerente explicação do problema jurídico da causalidade no Direito das Obrigações “comuns” (ver item 2.1.6, infra), sendo, ademais, plenamente acolhida pela jurisprudência”.

Mais adiante, sintetiza a eminente Professora gaúcha:

“A Teoria da Causalidade Adequada bem ampara uma coerente explicação do problema jurídico da causalidade do Direito das Obrigações “comum” (isto é, regido pelo Código Civil). Isto porque, partindo da distinção entre causa e condição, acolhe o juízo sobre a “causa mais adequada” fundando-o concretamente sobre a “relação de necessariedade” entre a causa e o dano, não afastando a possibilidade de ser indenizado, sob certas condições, o dano indireto (“dano por ricochete) nem o dano pela perda de uma chance, como veremos subsequentemente.

Porém, como toda a construção teórica, a Teoria da Causalidade Adequada não há de tomar-se em termos absolutos, como se fosse revestida por inconcebível rigidez histórica. As observações acima expendidas, visando assinalar os pontos de apoio a uma interpretação da expressão “por efeito dela direto e imediato” constante do texto legal em comento mostram que a Teoria, conquanto sólida em seus pressupostos, não é rígida nem padece do vício do abstratismo (inconfundível com a abstração que possibilita o pensamento conceitual). Pode-se, assim, compreender que o comando do art. 403 tem o seguinte significado:

• só há dever de indenizar se houve dano resultante de inexecução, tendo sido estabelecida a vinculação causal entre determinada omissão, ato ou atividade e o resultado danoso;
• o fato produtor da inexecução (fato danoso) deve ser considerado, em geral, causa adequada para a produção do efeito danoso (a própria inexecução) segundo o id quod plerunque accidid, acolhido no art. 335 do Código de Processo Civil;
• para considerar-se como “concretamente adequado” à produção do dano, o fato há de ter sido condição imprescindível para a produção do efeito danoso;
• a inexecução não deve ser atribuível a circunstâncias extraordinárias ou improváveis “que não seriam consideradas por um julgador prudente”, ou que de qualquer forma tenham desviado o nexo causal, segundo um juízo concreto de razoabilidade;
• o evento danoso deve ter sido, in concreto, causa necessária da inexecução, tendo em conta a existência, ou não, de concausas mais próximas que fossem hábeis a interromper o nexo de causalidade, mesmo que não seja a sua causa temporariamente imediata;
• para que um fato seja considerado “condição imprescindível” para a produção do dano, não é exigível que guarde com o dano uma relação de proximidade temporal, antes se exigindo uma proximidade lógica, sendo “o nexo de causa e efeito o aspecto lógico da verificação de causação do dano”, por explicar cabalmente a sua produção;
• o dano pode ter decorrido de concausalidade ou de concorrência causal”.

III – Atual entendimento da jurisprudência a respeito do tema

Certamente, as decisões dos Tribunais, com especial ênfase no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, são um interessantíssimo termômetro de como determinadas teses jurídicas, especialmente as mais complexas e polêmicas como a da causalidade, estão sendo compreendidas pela elite do pensamento jurídico do país num determinado período.

Daí a razão de se ter optado pela análise de julgados dos Tribunais Superiores que consideramos emblemáticos a respeito do tema da causalidade.

Como se poderá observar dos múltiplos e interessantíssimos precedentes a seguir transcritos, a questão da causalidade está longe de encontrar um ponto de pacificação, sendo, antes, extremamente polêmica, o que, na linha da introdução deste texto, revela um preocupante cenário para todos aqueles que desejam ver reduzidas as contendas em geral, com destaque para aquelas atinentes às relações entre segurados e seguradores.

Iniciemos por um julgado do STF de 2018, da relatoria do Ministro GILMAR MENDES. Trata-se de Agravo Interno em Ação Civil Originária (ACO 1853) cujo tema central é a responsabilidade civil do Estado. Houve condenação da União para que ressarcisse a Companhia Energética do Estado de Goiás em razão dos prejuízos advindos de descontos concedidos à Codemin, a título de subsídio tarifário.

O extenso acórdão busca, inicialmente, fazer uma varredura sobre as teorias existentes a respeito da causalidade, concluindo, ao final, expressamente, pela aplicação da Teoria da Causalidade Direta e Imediata. Por ser coincidente com o tema objeto de análise neste artigo, faremos a transcrição do quanto argumentado pelo Ministro relator:

“O tema da causalidade não se mostra de fácil domínio doutrinário e jurisprudencial. A doutrina civilista, aplicável também, neste ponto, no ramo do Direito Administrativo, pensou três teorias justificadoras do nexo de causalidade.

A primeira delas é a teoria da equivalência dos antecedentes causais ou “conditio sine qua non”, que foi vigorosamente rejeitada, pois poderia ensejar o ressarcimento de todos os danos vinculados remota ou indiretamente a um fato.

A teoria da causalidade adequada, por sua vez, foi mais bem aceita na doutrina e na jurisprudência, embora sem unanimidade. Nos dizeres do Prof. Flávio Tartuce, consiste na: “(…) teoria desenvolvida por Von Kries, pela qual se deve identificar, na presença de uma possível causa, aquela que, de forma potencial, gerou o evento danoso. Na interpretação deste autor, por esta teoria, somente o fato relevante ou causa necessária para o evento danoso gera a responsabilidade civil, devendo a indenização ser adequada aos fatos que a envolvam”. (Direito Civil, Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil, 12ª edição, Ed. Forense, 2017, p. 371).

Por fim, a terceira, a teoria do dano direto e imediato, também chamada de teoria da interrupção do nexo causal, surge como posição intermediária, tendo encontrado alguns adeptos na doutrina e tendo sido invocada em alguns julgados desta Corte.

Mutatis mutandis, apesar de se referir ao CC de 1916, apenas a título de exemplo, o RE 130.764, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJe 7.8.1992, cuja ementa transcrevo a seguir:

“Responsabilidade civil do Estado. Dano decorrente de assalto por quadrilha de que fazia parte preso foragido vários meses antes.

– A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69 (e, atualmente, no parágrafo 6º do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros.

– Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito à impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada.

– No caso, em face dos fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido, e com base nos quais reconheceu ele o nexo de causalidade indispensável para o reconhecimento da responsabilidade objetiva constitucional, é inequívoco que o nexo de causalidade inexiste, e, portanto, não pode haver a incidência da responsabilidade prevista no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69, a que corresponde o parágrafo 6º do artigo 37 da atual Constituição. Com efeito, o dano
decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido”. (grifo nosso)
A questão acerca da adoção de uma ou outra teoria é controvertida dentre os estudiosos do direito. Ainda segundo Tartuce, a diferença entre as duas últimas teorias é sutil. Vejamos:

“A teoria do dano direto e imediato trabalha mais com as exclusões totais de responsabilidade, ou seja, com a obstação do nexo causal. Por outra via, a teoria da causalidade adequada lida melhor com a concausalidade, isto é, com as contribuições de fatos para o evento danoso”. (Idem, Ibidem, p. 375).
Inexiste qualquer dificuldade para o intérprete do direito enquanto há apenas uma única causa para a ocorrência do dano. De outro lado, torna-se mais complexo averiguar a responsabilidade civil quando se tem mais de uma conduta (causa) potencial à geração do resultado advindo de causalidade múltipla. Diante dessa situação, o julgador, além de verificar se estão presentes os pressupostos da responsabilidade civil, deverá perquirir a conduta ou condutas efetivamente causadoras do dano.
(…)
A jurisprudência desta Corte teve a oportunidade de se debruçar sobre o tema, assentando o que segue:
(…)
O dever de indenizar, mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil objetiva do
Poder Público, supõe, dentre outros elementos (RTJ 163/1107- 1109, v.g.), a comprovada existência do nexo de causalidade material entre o comportamento do agente e o ‘eventus damni’, sem o que se torna inviável, no plano jurídico, o reconhecimento da obrigação de recompor o prejuízo sofrido pelo ofendido. – A comprovação da relação de causalidade – qualquer que seja a teoria que lhe dê suporte doutrinário (teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade necessária ou teoria da causalidade adequada) – revela-se essencial ao reconhecimento do dever de indenizar, pois, sem tal demonstração, não há como imputar, ao causador do dano, a responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos pelo ofendido. Doutrina. Precedentes.”
(…)
(RE-AgR 481.110, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 9.3.2007, grifo nosso)
In casu, vislumbram-se múltiplas causas concomitantes do desequilíbrio econômico-financeiro experimentado pela Celg. Analisando os relatórios da Aneel, percebe-se que a situação de dificuldade financeira suportada pela concessionária-autora foi ocasionada por diversos fatores relacionados, não se podendo imputar apenas ao subsídio devido à Codemin, mas também à má administração, à inadequada alocação de recursos, ao elevado índice de inadimplência nas contas a receber dos consumidores, à inapetência na cobrança dos valores devidos pelos órgãos da administração pública estadual, entre outros.
(…)
Nesse contexto, não é possível ampliar a responsabilidade da União para além dos prejuízos ocasionados em razão da operação Codemin, pois, necessariamente, deverá haver uma relação de causalidade direta e imediata entre o fato/conduta estatal com os danos produzidos (prejuízos suportados pela Celg).

A título de reforço argumentativo, há normatização nesse sentido no Código Civil de 2002, em seu art. 403, com correspondente no Código Civil de 1916 (art. 1.060), in verbis:
“Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”. (grifo nosso)

Ademais, a indenização deverá ser adequada aos fatos que a envolvem. Não há como responsabilizar a União por fatos estranhos à questão dos subsídios, como a má gestão da Celg, decisões administrativas equivocadas, inadimplência de outros órgãos e das contas a receber dos consumidores, pois isso implicaria onerar indevidamente o patrimônio público e gerar enriquecimento ilícito por parte da Celg/Estado do Goiás, que procedeu de forma temerária na sua gestão financeiro-administrativa.
Por essas razões, mantenho a decisão recorrida”.

Há, como se observa do texto do acórdão acima transcrito, dois interessantes precedentes do STF, um da relatoria do Ministro MOREIRA ALVES, outro do Ministro CELSO DE MELLO, todavia, como nos seus aspectos mais interessantes para fins do estudo do tema da causalidade, eles já se encontram transcritos no precedente acima, deixaremos de analisá-los.

Há que se mencionar, ainda, outro julgado do STF que teve como relator o Ministro CARLOS VELLOSO, sendo relator para o acórdão o Ministro JOAQUIM BARBOSA. Ali se debate a responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul pelo fato de um condenado que se encontrava em regime prisional semi-aberto e, em sete ocasiões, cometeu falta grave de evasão, não tendo os responsáveis pela execução da pena lhe aplicado a regressão de regime prisional, possibilitando ao infrator a oportunidade de praticar crime de estupro contra menor de 12 anos de idade, justamente no período em que deveria estar recolhido à prisão.

O Ministro relator originalmente sorteado era, como mencionado, o Ministro CARLOS VELLOSO. Esse proferiu voto no sentido de que, em se tratando de ato omissivo do Poder Público, a responsabilidade do Estado é de cunho subjetivo. Em seguida, analisando o conceito de falta de serviço (faute de service, dos franceses), propunha que se reconhecesse a falha do Estado, ainda que não atribuída a um indivíduo específico. Ocorre que, segundo o Ministro, a constatação de falha do Estado não é suficiente para determinar sua responsabilidade, devendo ficar demonstrado o nexo de causalidade entre a falta e o dano. Assim, utilizando-se do precedente, já transcrito acima, da relatoria do Ministro Moreira Alves, por meio do qual se prestigiou a Teoria da Causalidade Direta e Imediata, houve por bem não reconhecer a responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul.

Ocorreu, no entanto, divergência na Corte, restando vencido o Ministro CARLOS VELLOSO. Assim, passou-se a relatoria do acórdão para o Ministro JOAQUIM BARBOSA que proferiu voto divergente, ressaltando o seguinte:

“Ora, o nexo de causalidade, no caso, parece-me patente. Se a lei de execução penal houvesse sido aplicada com um mínimo de rigor, o condenado dificilmente teria continuado a cumprir a pena nas mesmas condições que originalmente lhe foram impostas. Por via de consequência, não teria sido a oportunidade de evadir-se pela oitava vez e cometer o bárbaro crime que cometeu, num horário em que deveria estar recolhido ao presídio”.

Após pedido de vista, houve novo voto, desta vez da Ministra ELLEN GRACIE, a qual, acompanhando o entendimento do Ministro JOAQUIM BARBOSA, manifestou seu entendimento pela responsabilização do Estado do Rio Grande do Sul. Assim aduziu a Ministra:

“Por isso, com vênia do eminente relator, não considero que o caso corresponda ao paradigma fixado no RE 130.764, no qual diversas concausas, além da faute de service, se conjugaram para produzir o evento danoso. Aqui, se os agentes do poder público houvessem antecipadamente cumprido com suas obrigações, o apenado deveria estar encarcerado na noite em que agrediu mãe e filha. A omissão se coloca, portato, como causa material suficiente a permitir que o evento danoso ocorresse. Assim, o dever de indenizar exsurge de forma inafastável”.

Em adição, cumpre fazer menção a outro precedente do STF, também da relatoria do Ministro CARLOS VELLOSO (já referido no acórdão relatado pelo Ministro GILMAR MENDES anteriormente comentado), onde, na ausência de oposições como aquelas manifestadas no acórdão acima, as quais permitiram a mudança do veredicto proposto pelo relator, prevaleceu o voto do Ministro VELLOSO que afastou a responsabilidade do Estado diante da prática de latrocínio por detento foragido.

Desses relevantes precedentes do STF, ao menos duas conclusões podem ser extraídas. A primeira, um tanto óbvia e que fica escancarada no julgado onde, pelas divergências surgidas entre os componentes da Corte, a relatoria do acórdão teve que migrar do Ministro VELLOSO para o Ministro JOAQUIM, é a da importância, para a solução do caso concreto, da corrente que se adote a respeito da causalidade. Ali, como vimos, a aplicação pura e simples da Teoria da Causalidade Direta e Imediata conduzira à ausência de responsabilização do Estado do Rio Grande do Sul, já que, como expôs o Ministro VELLOSO, não era possível atribuir à omissão dos agentes penitenciários o estupro da vítima cometido pelo prisioneiro foragido. No voto que terminou vencedor, no entanto, por conta da aplicação, ainda que não nominada, da Teoria da Causalidade Adequada, ou seja, do entendimento segundo o qual seria possível concluir-se que a manutenção ilícita de um detento no convívio social poderia ensejar consequências como aquela observada, fez com que o veredito fosse o oposto, ou seja, que se reconhecesse a responsabilidade do Estado pela violência cometida contra a adolescente.

A segunda conclusão que se pode extrair é a da efetiva inexistência de um posicionamento uniforme da jurisprudência (nem mesmo da Corte Suprema) a respeito desse relevantíssimo tema, o que, conforme já aqui destacado, importa na manutenção de um estado de insegurança dos jurisdicionados que, num sistema saudável, dever-se-ia evitar.

Sigamos, no entanto, na análise da jurisprudência, dessa vez do Superior Tribunal de Justiça.

Começaremos por emblemático precedente citado por JUDITH MARTINS-COSTA, da relatoria do Ministro FERNANDO GONÇALVES, no qual se analisava a existência de responsabilidade da Rio Grande Energia S.A. por descarga elétrica que teria decorrido do contato dos fios de alta tensão com galhos de árvores não podados.

Decidiu a 4ª Turma o seguinte:

“O ato ilícito praticado pela concessionária, consubstanciado na ausência de cortes das árvores localizadas juntos aos fios de alta tensão, possui a capacidade em abstrato de causar danos aos consumidores, restando configurado o nexo de causalidade ainda que adotada a teoria da causalidade adequada…”

Em recentíssimo precedente do STJ, decidiu a 3ª Turma, em acórdão relatado pelo eminente Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, pela aplicação da Teoria da Causalidade Adequada em conjunto com a do Dano Direto e Imediato, quando se debatia a legitimidade passiva do Banco Cooperativo do Brasil S.A. para responder solidariamente pelos danos decorrentes da liquidação extrajudicial das cooperativas de crédito Cooperfindes e Credescelsa. Vejamos a fundamentação do acórdão:

“No âmbito das relações de consumo, aplicando-se a teoria da causalidade adequada e do dano direto imediato, somente há responsabilidade civil por fato do produto ou serviço quando houver defeito e se isso for a causa dos danos sofridos pelo consumidor.

Na hipótese sob julgamento, nenhuma das causas da insolvência da cooperativa singular pode ser atribuída ao recorrente BANCOOB, o qual atuava como simples prestador de serviços do sistema de crédito cooperativo, nos termos da regulamentação das autoridades competentes, motivo pelo qual não há como reconhecer a responsabilidade solidária prevista nos arts. 7º, parágrafo único, 20
e 25 do CDC, pois o insurgente BANCOOB não forma a cadeia de fornecimento do serviço em discussão na controvérsia em julgamento.”.

Por fim, em outro precedente do STJ, da relatoria do Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, no qual se buscava a responsabilização do Sr. Luis Roberto Demarco Almeida por alegados danos morais praticados contra o Grupo Opportunity e o Sr. Daniel Dantas por força da pretensa prática de ofensas graves do primeiro contra os últimos, tendo sido suscitada a questão da causalidade, o Ministro Relator deu uma verdadeira aula, sendo enfático ao sustentar a aplicação, no caso em exame, da Teoria da Causalidade Direta e Imediata, embora seja o Ministro Sanseverino, como já aqui apontado e como ele próprio reconhece no voto, explícito entusiasta da Teoria da Causalidade Adequada:

“Com efeito, o nexo causal, ou a relação de causa e efeito entre fato imputado ao agente e dano sofrido pela vítima, constitui um dos pressupostos mais interessantes e intrincados da responsabilidade civil.
(…)
Na jurisprudência brasileira, a teoria do dano direto e imediato ganhou consagração em acórdão do STF, da relatoria do Min. Moreira Alves, reconhecendo-a como a teoria adotada, em nosso sistema jurídico, para explicar o nexo causal, afastando os inconvenientes das outras teorias (equivalência das condições e causalidade adequada):
(…)
Apesar de a teoria do dano direto e imediato ter grande prestígio no Direito brasileiro, tem sido considerada apenas uma variante da teoria da causalidade adequada, sendo ainda reconhecida como a que melhor resolve os problemas suscitados pelo nexo causal na responsabilidade civil.
(…)
Considero pessoalmente que a teoria que melhor explica o nexo causal, no plano da responsabilidade civil, é a da causalidade adequada, o que não afasta a utilidade prática das demais teorias, pois a verificação dos fatos que podem ser considerados causas de um determinado evento danoso antes de ser um problema teórico é uma questão de ordem prática, onde se situam todas as suas dificuldades.
As teorias nada mais são do que ferramentas postas à disposição dos operadores do Direito, podendo-se comparar a atividade do juiz com a do médico, que, para enfrentar uma determinada doença apresentada por seu paciente, pode contar com mais de uma alternativa de tratamento sem que nenhuma das técnicas possíveis se mostre equivocada.

Basta que se observe a possibilidade, até mesmo, de conjugação das teorias no plano da prática jurídica, consoante já aludido, que se volta para a solução de problemas concretos, que consistem, fundamentalmente, em estabelecer se um determinado fato pode ser considerado causa de um determinado evento danoso”.

Aqui um aspecto absolutamente essencial para o estudo que aqui se propõe. Mesmo quando haja o entendimento consolidado a respeito da prevalência de uma determinada Teoria em relação às demais, quando se está diante da necessidade de soluções práticas, de sua aplicação em intrincados casos concretos, haverá, muitas vezes, que se promover uma necessária flexibilização, visando a identificar aquela solução que mais se aproxima com o que se considere mais justo ante as particularidades do caso.

Finalmente, vale mencionar precedente da Terceira Turma, relatora a Ministra FÁTIMA NANCY ANDRIGUI, no qual se analisava a existência ou não de responsabilidade de uma loja de automóveis que, por negligência, forneceu à compradora de um veículo dados equivocados da conta corrente na qual depositaria o valor do carro, recusando-se, posteriormente, a entregá-lo.

No acórdão, esclareceu a Ministra Relatora:

“À luz da teoria da causalidade adequada, prevista expressamente no art. 403 do CC/02, somente se considera existente o nexo causal quando a conduta do agente for determinante à ocorrência do dano.
Precedentes.

Pela causalidade adequada, a concorrência de culpas, que na verdade consubstancia concorrência de causas para o evento danoso, só deve ser admitida em casos excepcionais, quando não se cogita de preponderância causal manifesta e provada da conduta do agente.
Precedentes.

A configuração da culpa concorrente exige a simultaneidade dos atos jurídicos, razão pela qual a sucessividade no descumprimento dos deveres de cuidado implica o seu afastamento.

Na hipótese dos autos, segundo a moldura fática delimitada pelo acórdão recorrido, a atuação imprudente do preposto da concessionária, “ao confirmar o negócio e emitir a nota fiscal de compra e venda de veículo em favor da autora, induziu a autora ao pagamento exigido pelos terceiros” (e-STJ, fl. 547), podendo, assim, ser considerada decisiva para a ocorrência do dano. Além disso, há sucessividade entre as condutas culposas da vítima e da responsável, o que também impede a caracterização de concorrência de culpas.

IV – Conclusão

Do conjunto de elementos que aqui se analisou, o que se extrai, em síntese, é, primeiramente, a efetiva impossibilidade de se estabelecer um critério único de identificação de causas.

É natural que haja preferências por essa ou aquela linha de pensamento, como é a do subscritor pela Teoria da Causalidade Adequada. Isso, no entanto, não exclui a salutar advertência feita pelo Ministro Sanseverino no precedente de sua relatoria acima transcrito, de que “As teorias nada mais são do que ferramentas postas à disposição dos operadores do Direito, podendo-se comparar a atividade do juiz com a do médico, que, para enfrentar uma determinada doença apresentada por seu paciente, pode contar com mais de uma alternativa de tratamento sem que nenhuma das técnicas possíveis se mostre equivocada”.

A expressão Juiz deveria poder ser substituída por regulador de sinistro, ou responsável pelo departamento de sinistro da seguradora. Isso, no entanto, teria que pressupor o exercício da atividade desses atores com absoluta isenção, o que, sabemos, ao menos na grande maioria das vezes, está longe de existir.

Imagine que, utilizando o exemplo apresentado pelo Ministro Sanseverino, estivéssemos diante de um médico que ministrasse remédios os mais diversos ao paciente, todavia interessado, muitas vezes, em que esse não alcançasse a cura.

O fato é que, para aqueles que desejarem, de boa-fé, encontrar os caminhos mais legítimos para a identificação das causas de um sinistro, as sugestões apresentadas pela Professora JUDITH MARTINS-COSTA e aqui transcritas nas fls. 14 e 15 servirão como um guia inestimável.

Que o seguro, tão importante para o desenvolvimento sócio-econômico do país, que hoje já ocupa um espaço expressivo no PIB e que possui condições de multiplicar-se em tamanho, possa encontrar, nos seus operadores, um campo fértil para esse tão desejado crescimento, o que, no nosso entendimento, só poderá ocorrer com o retorno dos vagões aos trilhos, através da observância dos seus princípios estruturantes, com especial ênfase para os da boa-fé objetiva e da função social do contrato, hoje praticamente esquecidos.

É o que esperamos.